«And some people say that it's just rock 'n' roll. Oh but it gets you right down to your soul» NICK CAVE

domingo, agosto 24, 2014

«A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço»

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«— A Nina era feliz? - perguntou Catherine.
— Espero que seja feliz - respondeu a rapariga [Marita]. - A felicidade nas pessoas inteligentes é a coisa mais rara que conheço

Esta passagem («Happiness in intelligent people is the rarest thing I know») integra o início do capítulo onze do segundo livro póstumo de Ernest Hemingway, The Garden of Eden / O Jardim do Éden, publicado em 1986, vinte e cinco anos após a sua morte.

Álvaro de Campos disse-o em verso: «Estou cansado da inteligência. / Pensar faz mal às emoções». Ou ainda: «Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça!» Como se razão e coração pudessem ser separados. Faz mal ao coração pensar, faz mal à cabeça sentir? O pensar consciente, realista, sensível e inconformado inquieta a alma e o coração.

Aristóteles já sabia que a inteligência fazia mal às emoções: “All men who have attained excellence in philosophy, in poetry, in art and in politics - even Socrates and Plato - had a melancholic habitus; indeed, some suffered even from melancholic disease.”

No poema Il Penseroso (O Meditativo) de John Milton, o sujeito poético invoca a deusa Melancolia, coberta com um véu negro:

But hail thou Goddess, sage and holy,
Hail divinest Melancholy
Whose Saintly visage is too bright
To hit the Sense of human sight;
And therefore to our weaker view,
O'er laid with black, staid Wisdoms hue. (lines 11–16)

Perante o absurdo da existência, os existencialistas colocavam três caminhos: voltar-lhe as costas, como acabou por fazer Hemingway em 1961, seguir um caminho de conformismo face às normas, significados e metodologias de viver já ditadas/herdadas ou, então, optar pela via do inconformismo: expressar-se de algum modo e criar significado no mundo, marcar a sua individualidade (não se resumir nem ser-se reduzido à existência da multidão/rebanho), ser senhor da sua vida, ser autêntico. Esta terceira via requere algumas ferramentas.

Não é a «inteligência», só por si, em termos de coeficiente, que faz com que a felicidade seja mais rara nos seus titulares. É a inteligência consciente do absurdo da existência e da realidade (o realismo pode causar inquietação e até pessimismo e menor grau da aceitação do estado de coisas); é a inteligência inconformada com os limites colocados por tal existência; é a inteligência dotada de elevada sensibilidade sobre a vida e o mundo; é a inteligência contemplativa e meditativa; é a inteligência com ambições existenciais de expressão, liberdade e autenticidade do eu.

Uma mente que aprofunda o diálogo interior, que elabora mais e se entrega a longas jornadas mentais, com maior acesso à realidade existencial e do eu que percepciona, terá mais dificuldades em aceitar as coisas como são, ignorar certas realidades, encolher os ombros e continuar a viver como se nada fosse.

São pessoas que, geralmente, aprofundam as questões vivenciais e que aspiram mais além ou mais acima («minha alma, se te matei / Perdoa por esta vez. / Fiz-te aspirar tão acima / Que desceste onde hoje vês, a seres um bicho-de-conta / Que te enrolaste de vez» - Bicho de Conta de Luiz de Macedo). E, com isso, pode vir a ansiedade e a angústia, obstáculos à felicidade. E, se calhar, mais criatividade e outras possibilidades de felicidade...

Na introdução d'O Turista Espiritual de Mick Brown pode ler-se: «Aquilo que Connolly chama Angst [termo alemão utilizado em filosofia para o estado recorrente de ansiedade ou angústia] é o acumular das pequenas incertezas sobre o lugar que ocupamos na ordem das coisas, a sensação enervante de que, de algum modo, a vida podia ser melhor, se ao menos, se ao menos.... o quê? É o desassossego do eu.»

No mesmo livro refere-se o seguinte: «"O segredo da felicidade", escreveu Cyril Connolly, "está em evitar a Angst. É um erro considerar que a felicidade é um estado positivo. Afastando a Angst, a condição de toda a infelicidade, ficamos preparados para receber as graças divinas que surjam no nosso caminho."»

Parece que há pessoas, as mais conscientes, meditativas e inconformadas sobre o mundo e a vida, que não se livram da Angst, do Desassossego, da Inquietação, como é ilustrado no Mestre de  Álvaro de Campos:

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
[...]
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
[...]
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

John Keats escreveu: "Do you not see how necessary a World of Pains and troubles is to school an Intelligence and make it a soul? A Place where the heart must feel and suffer in a thousand diverse ways!" (Excertos das Keats's Letters, datadas de 21 de Abril de 1810).

O que ignoramos não nos afecta, não nos faz sofrer. Daí muitas vezes o elogio da existência simples, sem lucubrações, da ilusão, da superficialidade, do conformismo. «The dumbest creatures are always the happiest...», disse a personagem George Falconer (Colin Firth) no filme A Single Man (2009). Novamente, aqui «dumb» não tem a ver exclusivamente com coeficiente de inteligência. No mesmo poema já citado de Álvaro de Campos lemos o sequinte:

Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

Por outras palavras, feliz é o homem que não tem inquietações existenciais, inconformismos, nem se entrega a contemplações. Todavia, será que sobreviver basta ao ser humano, que é dotado de razão e que precisa de progredir, de prosperar, de desenvolver-se, conhecer, elevar-se e alcançar objectivos ao longo da seu percurso existencial?

Viver inconsciente, iludido e aceitando tudo (circunstâncias, eventos e a si próprio), tem as suas vantagens, como a libertação da angústia e da consciência das coisas. Há quem prefira, mesmo sendo mais difícil, optar pela densidade, isto é, ser sempre um consciente inconformado e insatisfeito (activo e com os pés e cabeça na realidade), do que um inconsciente iludido e alegre (passivo e na irrealidade), embora no conforto do conformismo prático.

Todavia, nem é uma questão de escolha: é de ser quem se é, de se ser autêntico. Como pode alguém ser quem não é? N'O Jardim do Éden de Ernest Hemingway podemos ler: «When you start to live outside yourself, it's all dangerous.»

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A propósito:
«O detalhe é sempre mau» (really?)
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